segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Intervenção (Por Ernesto Xavier)

"Nós sofremos uma intervenção parecida em 2014. Tivemos um soldado para cada 55 moradores. Eu nunca tive um médico ou professor para cada 55 moradores". Gisele Martins, moradora da Favela da Maré, à Rádio Brasil de Fato.

O Rio de Janeiro possui cerca de 850 regiões dominadas pelo tráfico de drogas. 850. Elas não nasceram por geração espontânea ou milagre. Sacou o tamanho do problema? Imaginou uma intervenção nesse cenário?

E se eu te disser que o problema mais grave não está dentro dessas 850 regiões ou comunidades ou territórios ou favelas, seja lá o nome que você quiser dar?

O Rio vem firmando parcerias com as forças armadas há décadas. Grandes eventos como a ECO-92 tiveram os militares juntos. Copa do Mundo. Papa. Olimpíadas. Aquela sensação gostosa de paz, mesmo que os números absolutos dissessem o contrário. Mas se na TV diz que tá tudo em paz, então tá tudo em paz.

Durante o período de instalação das UPPs, eram as forças armadas que faziam a primeira ocupação, lembram? E aquele tanque enferrujado da Marinha entrando na favela? Lembram também? Eu fico imaginando aquele blindado lançando um tiro no meio da comunidade. Espetáculo.

A classe média ia urrar em gozo! Classe média gosta de ver sangue, contanto que não seja o seu. Se você pensar que a classe média reclamava de Merthiolate porque ardia e preferia mercúrio cromo, forçando o Merthiolate a não arder mais, então imagina se essa classe média tomasse um tiro de “bala perdida” dentro de seus apartamentos em Copacabana?

Desde junho do ano passado tivemos movimentações importantes do exército no Rio, na Rocinha, na Maré e na Cidade de Deus. Deu em que? Nada. O bagulho ficou mais doido. A porrada estancou. Os trafica faziam o que queriam. Tá todo mundo aí ainda. Dinheiro gasto a rodo. Anexos no orçamento. 

Aquele dinheirinho que escoa pro caixa 2 da campanha. Uma M-A-R-A-V-I-L-H-A.

Não se acaba com o tráfico e consequentemente o crime organizado matando traficante na favela por dois motivos simples: eles são substituídos por outro rapidamente, pois aquilo não é o Ministério do Trabalho e a pobreza e o acesso aos bens de consumo seguem escassos e em segundo lugar porque quem mantém aquela máquina funcionando não é atingido, mesmo que uns dêem mole e deixem um helicóptero com 400 kg de pasta base de cocaína ser apreendido na própria fazenda.

Esses são os dois principais motivos, mas outros se juntam nessa sopa de entulho que a gente é obrigado a tomar.

Uma delas está na “inteligência” do exército. Essa mesma que dizem que irão usar agora no Rio. A grande maioria dos militares está concentrada na região Sudeste. Um contingente espetacularmente grande não faz absolutamente nada. Limpam quartel e fazem vigília. Não estão na fronteira pra reforçar a fiscalização do que entra e sai do país.

Não estão defendendo fronteira, saca? Soberania nacional, defesa territorial e outras paradas que Bolsominions adoram falar. Não é pra isso que serve? Rio de Janeiro e São Paulo não fazem fronteira com ninguém. Coleguinha, AK-47 e AR-15 não brotam em árvore. Vem do exterior por via terrestre ou pelo porto. Traficante de favela carioca não fala inglês, espanhol ou russo pra negociar arma e droga na fronteira. Então tem alguém graúdo que faz isso por ele. Não sou eu. Não é você (acho) e não é o PM que tá aqui no Rio trabalhando de viatura velha e sem colete.

Outro ponto: traficante não sabe fazer manutenção em arma. Uma metralhadora dessas dura uns 3 meses na mão deles. Aí quebra e tem que comprar outra. Rotatividade sinistra! Chega muita parada. Deve vir pelo Ifood ou Uber Eats. Só pode. Entra no aplicativo, escolhe a metralhadora e ela chega com o motoboy junto com a nota fiscal e o troco.

Essa intervenção já começou faz tempo. Lá pelo século XVI quando tiraram meus antepassados da África e jogaram aqui.

Mas tudo você coloca o racismo no meio, né Ernesto?

Sinto dizer, porém não fui eu que no dia 13 maio abri as portas das senzalas, jogando negros na rua, sem trabalho, sem casa, sem instrução, sem dinheiro, com fome, marginalizados. É, não fui eu. Juro.

Depois também não fui eu que fiz remoções. Nem promovi o encarceramento em massa de negros.

Ah, também não fui eu que matei negros após a abolição, mesmo que eles nada tivessem feito. Não posso esquecer de dizer que também não fui eu que contei uma falsa história da África e do negro nos livros de história, nos filmes, novelas, livros...feitos por brancos, claro.

As favelas cresceram com esses negros, nordestinos, marginalizados em geral. O poder do Estado só ia lá com a polícia ou com candidato pra pedir voto. Fuzil ou santinho. E era isso. É isso. Essa é a intervenção que o pobre e preto conhece.

Eu poderia perguntar a alguns colegas da Zona Sul onde eles compram suas droguinhas (sem fazer julgamento do uso). Eu receberia alguns endereços nobres da cidade. Tem no Leblon, Ipanema, Copacabana. Será que o Fraga Netto vai se interessar? Mando a planilha pra ele. Vai rolar uma apreensão em massa de “jovens de classe média” ou vão continuar prendendo e matando só o “traficante fulano”?

Em breve a classe média vai se sentir em paz, andar com seu Iphone 8 de boa no Arpoador, comer seu açaí com guaraná e proteinato na casa de sucos e jogar futevôlei numa manhã de terça-feira na Barra. Aquela sensação de segurança. Soldados em fardas camufladas nas ruas. O Rio Maravilha! O Rio exportação! O Rio fitness!

O pretinho da favela vai correr de bala perdida, vai abrir a mochila toda vez que entrar ou sair do bairro, vai ter toque de recolher, vai ter enterro de familiar, de amigo, de conhecido. Mas o carioca-zona-sul-classe-média-nariz-em-pé estará vendo maratona de “La Casa de Papel” comendo snacks de mandioca comprada no Hortifruti, bebendo suco verde.

A intervenção vai sair uma hora. Os problemas continuarão aqui. As armas seguirão passando pela fronteira. A cocaína também. A pobreza na favela vai piorar. Muitas famílias vão chorar. Não tem mal necessário nesse caso. Vai morrer inocente. E não me venha com o discurso de que é inevitável, porque se fosse a sua família em risco, você não aceitaria nenhuma margem de risco. Essa margem só serve pra quem você não se importa.

Alguém aí tá se importando com o filho da dona Tereza, que sonhava jogar futebol e ainda estava no 7° ano, apesar da falta de professor na escola? Ou o bicho só pega quando o aluno do Santo Agostinho perde o celular na porta do colégio?

Quer intervir no Rio? Cria máquina do tempo e dá dignidade pro povo preto.

O resto é enxugar gelo.


Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".













































Nenhum comentário:

Postar um comentário