terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Mas, Ernesto... (Por Ernesto Xavier)

O carro atravessa a estrada à noite. Uma picape. Carro caro. O motorista sou eu, no caso. Uma blitz à frente e o trânsito fica um pouco mais lento. Nada de mais. Todos os carros vão passando em fila tranquilamente. Os policiais quase nem olham para os veículos, riem entre si, conversam. Um deles mexe no whatsapp. Faço os procedimentos padrões: diminuo a intensidade do farol, mantenho as mãos no volante, abaixo os vidros. 

E então o que acontece?

O cara arma o fuzil e aponta na minha direção.
Tcharaaaaaam!
Eu então calmamente ligo a luz interna e ele então percebe que há outra pessoa dentro do carro: uma mulher branca.
Ele abaixa o fuzil e me manda seguir.
Tcharaaaaaaam!!
Minha carta de alforria estava sentada no banco ao lado. Que maravilha é viver no Rio de Janeiro do século XIX. O fato ocorreu há alguns meses atrás. Clima tenso no Rio. Quando não foi, não é mesmo?
Aí alguns leitores vêm aqui me dizer: “Mas, Ernesto, eles estão apenas fazendo o trabalho deles”.
Sim, estão. Me apontando o fuzil. Fico até mais tranquilo quando ele engatilha. Dá aquela sensação gostosa de set de filmagem do Rambo. Só que eu, por acaso, sou o inimigo do Rambo.
Mas, Ernesto, a maioria desses policiais também são negros e pobres”.
Sim, querida, são. Ou você acha que as consequências do racismo atingem e são reproduzidas apenas pelos brancos?
Eu tenho uma sugestão: Deveriam criar uma nova matéria escolar para os ensinos Fundamental e Médio: “Racismo Estrutural Brasileiro: imagem e sociedade”.
Nesta disciplina, que seria obrigatória, valendo nota e só valeria tirar 10, o aluno aprenderia sobre como se formou o pensamento do cidadão brasileiro, como chegamos até aqui, etc.
Deixa de ser irônico, Ernesto”.
Estou falando sério. Nela, aprimoraríamos o olhar dos jovens, negros ou brancos. Mostraríamos novelas, comerciais de TV, editoriais de moda, noticiários. Seria interdisciplinar. O aluno deveria contar quantos negros encontra em uma novela que se passa no Brasil, quantos aparecem em comerciais de margarina, quantos aparecem nos noticiários policiais e fariam uma equação para chegar ao coeficiente de negritude da mídia brasileira.
O aluno entenderia porque “naturalmente” ele associa o crime a uma pessoa negra. Ele entenderia porque ele não se vê como negro, porque ele acha normal que quase todas as empregadas domésticas e babás sejam negras. E também que não é legal dizer que “ela é quase da família”, nem chama-la de “mãe-preta” ou coisas do tipo.
A matéria teria questões no ENEM. Envolveria História, Geografia, Sociologia, Matemática. Olhem o “valor agregado” que isso traria para o “cidadão de bem”. A classe média adora valor agregado e cidadão de bem.
Mas, Ernesto, porque você foca tanto nos policiais? Você quer acabar com a imagem dos militares?

Não, querido. Eu só não quero morrer. E, no caso, quem porta arma no Estado e pode fazer isso é um policial. Um médico não me ameaçaria com um bisturi e nem um professor com um giz.
Mas...
Dentro da sala de aula esse futuro policial poderia aprender um pouco sobre quem ele é, quem são seus irmãos sem farda, quem realmente pode ser uma ameaça e de que forma o pensamento social brasileiro age sobre ele, levando-o a pensar que somente pelo outro ser negro, então é uma ameaça.
Não, ele não pensa isso. Não é consciente não maioria das vezes. A sociedade é assim. A sociedade é racista. Infelizmente tenho que te avisar isso, caro leitor:
Você provavelmente é racista.
Não se assuste. Não vá para o banheiro chorar. Aguente firme. Vou repetir. Você provavelmente, se não for negro, é racista.
Respirou?
Um novo mundo se abre quando entendem isso. A sociedade brasileira está fundada em princípios de exclusão racial. Não dá pra explicar isso em apenas um texto no Facebook. Leva tempo. Apenas confie no que estou te dizendo. Algumas coisas irão acontecer comigo e nunca irão acontecer com você, branco, simplesmente porque minha pele carrega alguns símbolos, que historicamente me tornam alvo.
Sim, eu como negro, sou mais alvo do que agente (aquele que age, ok?) da violência. Cerca de 23100 jovens negros entre 15 e 29 anos são mortos todos os anos no Brasil. Um negro morto a cada 23 minutos. Morto por mãos brancas e negras, sim. Morto por estar envolvido com algo errado ou não. Morto porque a vida o colocou desde o nascimento em posição vulnerável. Ele pode ser um policial. Nossa polícia é, também, a que mais morre. Já chorei e sofri por 2 policiais negros mortos na minha família. Pessoas que eu amava demais. Não quero isso novamente.
Criaram uma guerra entre pretos. Bandidos negros. Policiais de baixa patente igualmente negros.
Não é só a polícia que deve entender isso. É você que escreve “mas” a tudo que diz respeito ao nosso direito à vida. 

O seu “mimimi” ajuda indiretamente a matar mais alguém. 

Provavelmente um jovem negro morreu enquanto você lia esse texto. Você leu mesmo? 

Ou apenas vai escrever o nome do seu candidato à presidente nos comentários? 

O nome dele é o seu argumento?

#SentiNaPele

Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".








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